Acordei sobressaltada como acontece a cada noite em que o meu inconsciente decide pregar-me partidas. Estava dentro de um carro e pelo que fui observando, estava em Nova Iorque. Naquela cidade onde são realizados sonhos e onde crescem outros a uma velocidade estonteante. Sinto uma tontura e quase que perco os sentidos e quando me apercebi, encontrava-me à beira de um precipício. A figura do caro tinha desaparecido. A sensação de felicidade, infelizmente, tinha também desaparecido para dar lugar à sensação de culpa, de que não tinha mais razões para viver.
Observei-me e vestia aquele típico vestido branco mas não era aquele que vês e encontras facilmente. Era um vestido de noiva. Cauda em forma de funil e consideravelmente, longa. Véu e cabelo preso. Senti algo nas mãos. Um ramo de orquídeas, as minhas preferidas, meticulosamente arranjadas. Com o susto e incerteza do que raio se estava a passar, o ramo escorregou por entre os meus longos dedos e caiu. Observei a sua queda e as pétalas a pairarem, inexpressivas. Não vi o fundo àquele precipício nem, na sua largura e imponência, o lugar onde o ramo caiu, inanimado mas também não era o que mais importava naquele momento mas eu sentia que sim e como não fazia a ideia de onde estava, porque estava assim vestida e porque razão me sentia assim, as perguntas surgiram à velocidade da luz na minha mente e fui assaltada por uma vontade inexplicável de chorar. Perdi as forças e quase caí para a frente, onde decerto iria de encontro à morte, ao ramo de orquídeas. Morta, o mais certo. Recuei instintivamente e senti-me cair de costas e nesse escasso tempo em que estava a cair, o cenário mudou. Já não vestia aquele vestido imaculado mas sim uns calções de ganga, top floreado e saltos altos. Caí desamparada nos braços de alguém. Sei-o pois senti o seu calor, o seu respirar e bater acelerado do seu coração, o que provocou uma sensação de bem-estar e um sorriso involuntário.
- Estás bem?
Olhei aquele ser com olhos de ver e constatei que nunca tinha visto algo tão bonito. Moreno, olhos verdes e traços do rosto, simplesmente, lindos aos meus olhos. Fiquei sem noção, sem jeito e simplesmente afastei-o de mim e saí dali. Quer dizer, nem sabia bem onde me encontrava. Apesar da pressa de sair, consegui registar na minha mente pequenos detalhes sobre aquele local e à primeira impressão, parecia uma festa numa casa enorme. Senti um calor inexplicável e a sensação de que devia sair dali. Abri cada porta e estas apenas, iam dar a outras divisões da casa. Era abordada e convidada a um shot ou até mesmo a um selo. Nem me dava ao trabalho de responder, fechava a porta e obrigava os meus pés a efectuarem meia-volta com o simples objectivo de encontrar uma saída. Após busca intensiva e de constatar, por mais estranho que fosse, a inexistência de janelas, avistei um jardim. Obriguei-me a correr procurando sair daquela propriedade. Questionei-me da quantidade de tempo que teria passado, o meu corpo gritava para que eu parasse mas aquele jardim parecia não ter fim e eu queria uma saída. Cada vez que me distanciava, avistava de novo a piscina e aqueles seres loucos a festejarem. Não havia fim. Frustrada, sentei-me e decidi abordar uma rapariga.
- Hey, há alguma maneira de sair daqui? disse, tocando-lhe para que ela me olhasse. Os olhos dela pareciam possuídos. Quer dizer, ela parecia possuída e para comigo pensei, efeitos das drogas sem dúvida e apenas obtive dela uma frase repetitiva "Não há saída! Não há saída!" com uma voz rouca e monótona. Assustada, tentava perceber quem ela era pois aquela cara, não me era estranha.
A Tatuagem. O dragão desenhado meticulosamente a envolver os seus dedos. Só podia ser a Mel. Tentei chamá-la e nenhum som saiu da minha boca. Senti alguém a puxar-me e afastar-me dela e apenas, tentava desesperadamente chamá-la com intenção de que ela acorda-se daquele transe. Mudei de objectivo. Ela já estava longe. Tentei soltar-me e nesse momento, senti uma dor indescritível e parecia que estavam a arrancar-me a pele. Os meus olhos teimavam em fecharem-se e eu apenas lutava contra isso mas fui fraca. Desmaiei.
- Amy? Amy?
Esta voz não me era estranha. Abri os olhos e era a Mel.
- O que se passou? Estás bem? Tomaste alguma droga? Que casa era aquela? Mel, responde! Sei que era real. Só podia ser real. Tinha que ser real. Eu vi e senti, TUDO! Onde estou?
O quarto era branco. A Mel estava do outro lado e via a partir de uma janela. Tentei levantar-me e constatei que estava amarrada à cama. Desatei a gritar.
- Mel? Que raio se passa? Isto é um sonho? Mel? Mel?
Comecei a chorar e a tentar libertar-me. A Mel entra no quarto, abraça-me e sussurra-me ao ouvido.
- Voltou a acontecer. Não é um sonho. Tens um problema e tens que admitir isso. Vês coisas que não existem, Amy. Precisas de ajuda. Desculpa.
Beijou-me a face e vi os seus olhos a querer inundar-se em lágrimas.
- Onde vais? Mel?
- Amy, a tua mente prega-te partidas. Já não sabes distinguir o que é real ou não!
- Eu sei que és real, Mel!
- Sim, sou mas a tal casa, o vestido de noiva, o carro não são reais.
- Como sabes disso?
- Eu vi! Tu, no nosso apartamento, estavas ... nem sei! Assustaste-me a sério, Amy. Apenas, já não distingues. Agora, deixa-me ir. Está na hora do comprimido.
- Não! Mel, não vás! Não quero tomar aquilo! Tira-me o que sou. Mel, não vás - as lágrimas já caiam. A voz já falhava e parecia que nada do que eu pudesse dizer iria fazer com que a Mel me tirasse dali.
- Adeus, Amy.
E saiu. Naquele momento, fiquei sozinha mas por pouco tempo. A enfermeira entrou e deu-me o tal comprimido. Assim que o engoli, tudo ficou escuro aos meus olhos e adormeci, deixando que o eu se fosse embora. Sim, confesso já não sei o que é ou não real. Vivo presa entre dois universos paralelos. Os comprimidos e o isolamento são o cocktail perfeito para me manter distante das alucinações. Até àquele dia.
20 de Outubro de 1990. Faziam questão de me dizer que dia era. Neste dia, escrevi isto tudo e programei durante uma semana, recolher todos os comprimidos, fingindo que os tomava. Separados faziam a sua função, juntos eram o Cocktail perfeito para um suicídio. Chegou dia 20 e numa ida à casa de banho, ingeri-os todos de uma vez. Disse Adeus a um dos universos, ao real e agora sim, estava no meu lugar, onde pertencia. E foi naquele dia que vi por uma última vez a Mel e ela olhou-me sabendo o que iria fazer.Vou ter saudades dela. Apenas renasci e deixei de estar dividida entre o real ou não e passei a pertencer ao real da minha mente.