"A porta abriu-se e ele saltou do sofá impelindo por uma força que desconhecia:
- Por onde andaste este tempo todo? - perguntou inquieto, com o coração descompassado e os sentimentos confusos. Um tímido sorriso foi ao encontro do seu olhar e o medo desvaneceu.
Ela voltara, mesmo tendo dito que não o faria. Voltara para o conforto dos seus braços e nada, nem ninguem, a tiraria de lá.
Abraçou-a e sem conseguir evitar, a sua mente viajou até àquele dia:
"-Vou-me embora. O meu lugar já não é aqui.
- Não vás. Pelo menos sem me dizeres o porquê.
- É melhor não saberes.
- Porquê? Eu quero remediar os problemas.
- Lamento mas já fizeste demais. Adeus"
Ela saíra pela porta fora, e permanecera ausente durante o que lhe parecera anos. Mas ali estava, sorrindo, abraçada a ele. Ainda com o coração apertado da ausência dela, tentou absorver o seu cheiro, sentir o macio da sua pele, mas algo o impedia de se sentir completo. Era como se parte dela não estivesse lá. Pareceu-lhe menos real que ao inicio quando ouvira a porta abrir, fazendo aquele chiar tão típico. Largou-a e quando esperava ouvir a voz dela, acordou. Ainda sem abrir os olhos lançou a sua mão para o lado direito da cama e o vazio tocou-lhe nos dedos. Ela não tinha estado lá. Ainda não tinha chegado o dia do regresso.
Frustrado, levou as mãos à cara e escondeu-se. Estava a ser estúpido! Ela foi e não vai voltar. "Ela abandonou-te, mete isso na cabeça." - Puxou as mantas, aconchegou-se pois um frio atravessou-lhe o coração e decidiu voltar a adormecer pois ainda nem a metade da noite ia. Rebolou na cama, bufou e pregou pragas à mulher que se foi embora com o seu coração. Decidiu levantar-se. Já sabia o que fazer. Dirigiu-se à cozinha, tirou um copo do armário, encheu-o de leite e colocou-o no microondas. Sentou-se frente a este e ficou a observar o copo a rodar irrevogavelmente até que ouviu o 'plim' característico que o dava como pronto. Com o copo na mão, preparava-se para se dirigir para a sala quando é barrado por um corpo humano.
O copo caí instantaneamente. Os vidros espalham-se entre o espaço vazio que os separava e Tomás não reage ao que se apresentava aos seus olhos. Sofia começou a reclamar com os estragos e pelo meio, escapava um pedido de desculpas. Ali entre a porta da cozinha e da sala, Tomás com um braço afastou Sofia que agora refilava sobre o quão caro eram os sapatos e dirigiu-se para o quarto. Mecanicamente, Tomás foi seguido pela Sofia. Ela, já farta da atitude dele gritou o seu nome. Tomás, virou-se e apenas disse:
- Acabei de sonhar contigo e agora estás aqui. Hoje dormes no sofá. Agora deixa-me pôr as ideias no lugar.
Sofia ficou boquiaberta e ainda tentou reclamar mas Tomás fechou-lhe a porta na cara não lhe dando oportunidade de ripostar. Irrevogavelmente, dirigiu-se para o sofá e assim que se sentiu quente e aconchegada, adormeceu. Enquanto isto, Tomás deitado na cama, fechava os olhos, esperava uns minutos, de seguida, abria os olhos e dirigia-se à porta para espreitar para o buraco da fechadura e ali estava o corpo dela, ali estava o amor da sua vida, deitado no sofá. Observava o seu peito a subir e a descer, o que significava que respirava, Sofia estava bem viva e dormitava no seu sofá. Tomás bufava e confuso voltava à cama e repetia o mesmo processo de fechar os olhos, abri-los e de seguida, observá-la pela fechadura e em todas as vezes que repetia o processo chegava sempre à mesma conclusão: Sofia tinha voltado.
Eram 8 da manhã, quando Tomás se levantou. Abriu a porta do quarto, dirigiu-se para a casa de banho mas para efectuar tal trajecto tinha que atravessar a sala de estar. Tentou não olhar o sofá mas foi mais forte que ele. E como sempre, ele estava vazio. Confuso e pensando que estaria a enlouquecer, começou a murmurar sozinho:
- Tu precisas é de sair de casa, Tom. Tom, não. Tomás! A Sofia é que te apelidava de Tom. Perde esse hábito. Ela não está, como vês o sofá está vazio. Lava a cara, faz as tuas necessidades, lava as mãos e vai tomar o pequeno-almoço.
Agora, dirigindo-se para a cozinha e ainda ensonado, pisou algo húmido e sentiu de seguida de uma dor. Fixou o chão. O seu sangue misturava-se agora com o leite derramado. Farto do que se passava à sua volta, virou costas àquele cenário e foi para o quarto. Cobriu-se com o edredão esperou que tudo passasse sem que ele mexesse um dedo!
Enquanto Tomás travava uma luta consigo mesmo, Sofia acordou com os primeiros raios de sol que atravessaram a janela, decidiu espreitar pelo buraco da fechadura da porta do quarto do ex-namorado, suspirou e sorriu. Decidiu fazer-lhe o pequeno almoço e sabendo como ele é, não teria nada no frigorífico por isso dirigiu-se de imediato à mercearia que ficava ao fim da rua.
Entrou na mercearia com um sorriso de orelha a orelha, confiante de que quando chegasse a casa, Tomás a receberia de braços abertos e pronto a perdoá-la. A D.Clementina assim que viu Sofia a entrar pela sua porta, dirigiu-se a ela clamando:
- Sofia, minha querida. Há quanto tempo! - abraçando-a e dando-lhe um beijo em cada bochecha redonda.
- D.Clementina, como está?- retribuindo-lhe os beijinhos.
- Estou muito bem, minha filha. Agora conta-me, conta-me porque razão saíste daqui do bairro? Porque deixaste o Tomás? Desde que saíste daqui que ele está de rastos, vêm aqui à mercearia de pijama, todo mal cheiroso, compra cervejas e só porcarias. O Sr.João, dono do video-clube comentou comigo que ele só aluga filmes para chorar. Vêm aqui com o seu olhar triste e coração partido. Sofia? Estás a ouvir-me?
Sofia ao ouvir o discurso da senhora, o seu pequeno coração apertou-se, sentiu-se mal pelo sofrimento que causou a Tom.
- D.Clementina, eu voltei para remediar tudo. Agora, pode ajudar-me a escolher a melhor fruta, o melhor leite, o melhor pão e o melhor doce de tomate para fazer o melhor pequeno-almoço para o Tomás?
- Oh minha querida, não te preocupes. Vamos lá então!
Da mesma maneira em que a senhora tirou o humor a Sofia, lhe restabeleceu a esperança de que Tomás a iria perdoar quando ela lhe explicasse as suas razões ... depois claro de tomar aquele pequeno-almoço divino. Um Homem pensa melhor com a barriga aconchegada.
Com a carteira mais vazia mas de coração cheio de esperança, Sofia voltou a subir a rua com dois sacos pesados, um de cada lado e até chegar ao apartamento, viu pessoas que perdeu de vista por quase um ano e pensado melhor faz exactamente, um ano que saiu de malas feitas rumo a Paris. Já frente à porta, pousou os sacos e tirou as chaves da mala. Abriu a porta e de sacos já na mão, empurrou a porta com o pé. Deu poucos passos até ver um rasto de sangue que daria ao quarto de Tomás. Pousou os sacos em cima da mesa da sala e entrou de rompante no quarto do Tomás:
- Tomás, Tomás! O que se passa? Tomás!!
- És mesmo tu ou estarei maluco? - replicou, virando-se de barriga para cima para poder deslumbrar a sua presença física.
Sofia, avançando para poder se sentar na cama - Sim, sou eu, Tom.
- Fica onde estás, Sofia. Porque razão estás aqui?
- Vim fazer-te o pequeno-almoço, meu tonto.
- Não preciso que me alimentem. Eu faço-o sozinho. Onde andaste este tempo todo? Aí não te preocupaste em fazer-me o pequeno-almoço! Em acordar-me todas as manhãs com café quente acabado de fazer, com o som da torradeira e até mesmo com o som da tampa do frasco do doce de tomate. Onde andaste tu, amor da minha vida?
- Estive em Paris. - murmurou, Sofia com medo da sua reacção.
- Era a nossa viagem, lembras-te?
- Sim, eu sei mas eu tive que ir sem ti.
- Porquê, Sofia? Porquê?
- Isso não interessa! Interessa é que voltei, meu amor. Voltei para te fazer o pequeno-almoço para o resto da tua vida. Eu tenho certezas, agora estou pronta para nós.
- Pois mas eu se calhar não estou. Um ano é muito tempo. Não posso mentir mas posso afastar a pessoa que me faz sofrer. Não tens noção de quantas noites fiquei acordado, esperando-te. Não tens noção de quantas vezes fazia as refeições a contar contigo e até punha a mesa a contar contigo. Foi um ano em que estiveste fora... Partiste o meu coração. Mereces que parta o teu!
- Não sejas tão duro.
Tomás assim que ouviu o descaramento de Sofia, levantou-se de uma só vez e dirigiu-se a passos largos na sua direcção, obrigando-a a recuar até se encostar ao armário. Respirando devagar, esperou uma reacção por parte de Tomás e Ele apenas a olhava confuso, franzindo a testa até que as palavras lhe saíram:
- Sabes que ... que, magoaste, não sabes?
- Calculo, Tom mas voltei par
- Cala-te! - clamou - Não voltes a usar esse nome. Por favor, doí tanto!
- Mas eu estou aqui agora.
- Sim, eu sei mas eu também te queria aqui durante o ano que passou. Aquele em que desapareceste sem uma única explicação.
- Por favor, pará de bater nessa tecla! Não nos leva a lado nenhum!
- A meu ver, leva. Eu quero uma explicação antes de que perca a cabeça e acabe por me render ao teu cheiro, à tua pele que está mais luminosa do que nunca, aos teus lábios que parece que gritam por mim. Estou a tentar resistir-te porque além de te amar ainda quero saber se ainda me amas, as tuas razões e o principal: ver se estás a mentir.
Sofia aproximou-se dele, ficando à distancia de um nariz dos lábios dele. Tomás, instantaneamente, recuou e pediu-lhe para que saísse pois não tinha mais nada a dizer-lhe.
- Tomás, queres provas?
- Sim, Sofia. Eu quero provas irrefutáveis.
- Irás ter mas para isso tens que estar disposto a um banho, retocar essa barba desajeitada, vestir-te e também a aproveitar um dia de sol. Dá-me esta oportunidade, Tom. Só te peço isto! Dá-me esta oportunidade de te mostrar que continuo apaixonada por ti.
- Ok, Sofia. Agora, dá-me uma hora - rosnou, virando-lhe as costas e dirigindo-se para a casa de banho para um longo banho de imersão.
Sofia, radiante dirigiu-se para a cozinha, limpou os estragos que o copo de leite provocou e pegou nos sacos para preparar o pequeno-almoço. Preparou tudo numa travessa e decidiu não esperar a tal hora que Tomás lhe tinha pedido. Decidiu agarrar na travessa e entrar pé ante pé no quarto dele, encontrou as suas roupas em cima da cama e ouviu água a mexer na casa de banho. Nem bateu à porta:
- Hey meu amor, como já estava pronto decidi não esperar.
- Não posso respirar um pouco, Sofia?
- Pronto, ficas aqui com isto e eu vou-me embora.
- Não! Fica aqui comigo.
- A sério?
- Sim. Podes começar a contar-me tudo, S.
- Mas não há nada par..
- Creio que sim, S. - interrompeu Tom. Ele procurava explicações e ela não iria fugir com o cu à seringa.
Sofia, sentou-se na sanita, aclarou a voz e demorou a começar a discursar mas uns minutos a observar Tom, fê-la ganhar coragem pois ele merecia uma explicação:
- Eu acordei e não fazia sentido continuar ali contigo. Decidi ir porque Paris nunca foi nosso. Já era meu e eu tinha que lá ir sem ti, deixar-te seguir a tua vida. Acordei, olhei para ti e vi que não me merecias, que não te merecia pois és demasiado bom para mim. Demasiado real e tive medo. Simplesmente, fugi e entretanto fiz vida lá, arranjei um emprego, subi na empresa e agora que estou concretizada profissionalmente, senti um vazio. Decidi voltar mas ver-te assim partiu-me o coração. Como o copo de leite.
- Tal e qual... Eu caí e parti-me. Estou a juntar os meus pedaços e agora é que voltas? Foste egoísta! Então, quando voltas para Paris?
- Pois. Terei que voltar. Será demais pedir para voltares comigo?
Tom imergiu de repente, sem pré-aviso. Sofia, em pânico levantou-se de um salto e tentou puxá-lo para cima, chamando-o ininterruptamente. Tomás puxou-a contra ele. Os dois mergulharam na água quente com espuma a dificultar a visão para o fundo da banheira. Sofia, em pânico emergiu:
- Estás parvo ou quê?
Tom vendo a sua Sofia, a cara que ela fazia quando ele fazia asneira, o cabelo a escorrer água, a roupa molhada e colada ao corpo que mostrava os seus mamilos salientes e os lábios húmidos, teve um flash rápido de momentos que passaram e aquela cena não lhe era estranha e como tal, ele sabia o fim daquele momento ... Sem hesitar, puxou-a para si e envolveu-a com os seus lábios e instantaneamente a sua mente viajou para aqueles dias de solidão, para aqueles dia de coração partido, mente desarrumada e sem amor-próprio. Aquele beijo não lhe soube a nada. Não lhe aqueceu o coração como já aqueceu em tempos, não lhe deu vontade de sorrir como dantes. Foi um beijo sem sentimentos, um beijo sem borboletas no estômago, apenas um beijo. Afastando-a disse-lhe:
- Desculpa, Sofia.
Tom olhou Sofia e viu o seu sorriso, sentiu o coração dela a bater no seu peito descompassadamente e viu que ela ainda o amava mas infelizmente, ele já não a amava. Ele estava curado.
- Desculpa pelo quê, amor? - disse, Sofia com o coração cheio de esperança.
- Estou curado, Sofia. Não senti nada! Não precisas de justificar-te, eu já não te amo.
- Mas podes voltar a amar-me, já o fizeste uma vez Tom - reclamou Sofia, aterrorizada.
- Sim, eu amei-te mas magoaste-me! Não acreditaste no sentimento que tinha por ti, não acreditaste no quanto eu te amava e agora vieste tarde demais. Seca-te e sabes onde é a porta de saída, presumo.
- Mas, não posso desistir assim!
- Podes sim! Tal e qual como desististe à um ano atrás. Enche os pulmões de coragem e fá-lo de novo! E agora já não te amo, não tens razões para ficar por isso vai-te embora, Sofia!
Com dificuldade, Sofia saiu da banheira. Procurou uma toalha, embrulhou-se nela e fez o mesmo caminho que tinha feito no dia em que saiu daquela casa, sem olhar para trás, com as lágrimas a cair e com a esperança de ficar curada"
One-Shot Semanal por Cassandra Lovelace