Ela percorria aquele caminho pela enésima vez, calcando sempre as mesmas pedras da rua e evitando os charcos que se formavam em todo o lado. Olhava para trás, receosa e com a tensão a inunda-la, temendo os vultos que lhe preenchiam a retaguarda. Continuou a avançar sob a chuva que começara a cair copiosamente e deixando que as suas lágrimas se envolvessem nas gotas de chuva que lhe percorriam também o rosto. Baixou a cabeça e enveredou por uma passagem sua conhecida em busca de algum refúgio e esforçando-se por fundir a sua forma nas sombras, tentando despistar as risotas e comentários desagradáveis que ouvia há já bastante tempo.
A sua respiração ofegante e pausada teimava em dificultar-lhe o percurso, persuadindo-a a parar e recobrar algum fôlego. Teimando e relembrando-se que não podia ficar ali, à espera que aqueles seres retrógrados a alcançassem, enfiou o carapuço da sua camisola e apressou o passo. Ouvia os passos relaxados e os risos de chacota incessantes a aproximarem-se e levando a mão à cara , numa tentativa frustrada de limpar o semblante das lágrimas, começou a correr, esforçando-se por controlar a respiração. A tarde já ia longe e com ela a luz do sol tinha desaparecido, descendo apressadamente por detrás das montanhas que se podiam avistar para lá do ruído constante e dos prédios imponentes que ocupavam aquela cidade. A noite chegara mais depressa que o que ela pervera e a escuridão tornara-se um obstáculo. Não obstante, talvez também aquelas sanguessugas que a perseguiam se recolhessem nos seus becos, aguardando o novo dia que não tardaria a chegar, como uma nova sentença.
A cena repetira-se pela centésima vez naquele dia. Fazia tempo que ela não se recordava do que era ter paz na sua vida, sem ter aqueles abutres sempre a apontarem-lhe o dedo. Os atos eram sempre os mesmos, ainda que mais robustos e elaborados que no começo daquele pesadelo. Os expectadores eram sempre os mesmos, que se recolhiam nas sombras recônditas e enxergavam toda a cena com um olhar de pura pena. Ela não precisava de pena, nem tão pouco de alguém que a salvasse. Na verdade, já estava habituada ao ritual na qual era protagonista todas as manhãs e tardes, nas horas antes de o dia findar. As lágrimas já não teimavam em despontar e os gritos há muito que haviam cessado, deixando de ecoar pelas paredes frias e egoístas daquele espaço.
Recolhia-se sobre o seu corpo esguio e fraco e permanecia assim até ao fim daquele pesadelo, ainda que parecesse que aqueles canalhas não se desgastavam minimamente nas repetidas investidas que faziam sobre ela. As suas roupas rasgadas, manchadas de sangue, e todas as nódoas negras que lhe caracterizavam os braços, pernas e até cara, testemunhavam a raiva e satisfação no rosto dos agressores. Todos os dias era o mesmo. Não, ela não desejava a salvação. Ela sabia que estava mal, desenquadrada, ela sabia que não era boa suficiente, não era bonita suficiente, não era inteligente o suficiente. Sabia que aquele não era o seu mundo, não era o mundo onde alguém pudesse ser diferente. Onde alguém pudesse ter as suas características sem ser alvo de criticas. Aprendera-o com muito custo, até demais para o que a sua personalidade frágil poderia aguentar.
No entanto, ela era uma resistente. Erguendo a cabeça todas as manhãs da almofada rasgada e molhada das lágrimas que escorriam toda a noite. Enfrentando o mesmo a cada novo dia, aguardando pela hora em que se ergueria do chão gasto e repostaria pontapé por pontapé, palavra por palavra, tudo o que tinha sofrido nos últimos meses. Na verdade, ela apenas desejava que os outros sentissem o que era ser diferente dos demais, sofrer nas mãos de seres desprezíveis.
Desta vez não prendera as lágrimas que agora lhe escorriam pelo semblante, enquanto ela caminhava sob a chuva, atentando a qualquer esconderijo onde se pudesse resguardar e despistar os seus perseguidores. Os risos de chacota ressoavam pela avenida, provocando-lhe um temor a cada segundo.
Avistou uma casa abandonada ao fundo daquele caminho, embrenhada nas sombras frias, entre duas moradias. Encaminhou-se até lá a passadas largas e galgando o chão ferozmente, rapidamente estava à entrada da casa sombria.
Os vidros partidos espalhavam-se por cima das ervas secas e rasteiras daquilo que outrora, por certo, havia sido um belo jardim. Aninhou-se e apanhou um vidro, fazendo a sua mão enrolar-se em sua volta. Pelo canto do olho observou os movimentos da retaguarda e viu o vulto da cambada de rapazes que perseguiam, a tornarem-se distintos nas proximidades. Levantou-se do chão e encarou-os com uma expressão de ódio.
-Acham que é fácil? - Bradou, erguendo a mão que portava o vidro. - Ser alvo de chacota todo o dia, sem que ninguém conheça a minha história? -Sorriu ironicamente - Acham que é fácil perder ambos os pais num incêndio, sobrevivendo com todas estas marcas que tornam o meu rosto tão indecifrável? Perder todo o cabelo por um cancro que apareceu do nada, e ficar neste estado miserável por causa de medicamentos que em nada melhoram o meu dia? Acusaram-me, gozaram comigo. O que vos deu esse direito? Vocês não sabem a minha história!
Com passos curtos avançou em direção a eles. Os risos haviam cessado e a consternação estava patente nas expressões que assumiam.
-Vocês levaram-me a isto e espero que tenham esse peso na consciência para toda a eternidade! -Afirmou e engolindo em seco, desferiu um golpe na garganta, cortando-a com o vidro. O seu corpo caiu por terra formando uma poça de sangue. Sangue vermelho, como o de toda a gente.
Emma Sommers,*
Renegada à quinta !
Renegada à quinta !
Como sempre, adorei! Escreves lindamente e tudo isto serviu para mostrar o quanto as pessoas não têm consciência de nada! Falam sobre tudo e todos mas não sabem a história da pessoa. Tal como a personagem, por serem enxovalhados podem cometer suicidio e isto está longe de não ser realidade. Parabéns pelo texto! Beijinho! ^^
ResponderEliminarInfelizmente, acontecem muitos casos de pessoa a gozarem com os outros sem nem sequer saberem se eles tiveram um pasado infernal que os tornou assim. É triste, mas é verdade...
ResponderEliminarMas concordo com o Hayley, escreves muito bem e gostei muito desta história, assim como gosto muito deste vosso blog, acho que está original e todos vocês escrevem bem! (:
Emm, adorei! Uma boa maneira de mostrar o que é ser diferente. Um pequeno conto em que a personagem pode ser qualquer pessoa que seja enxovalhada, que seja gozada. Normalmente, quando somos alvos de chacota é porque estamos num bom caminho. Quando não nos importamos com o que as pessoas ao nosso redor pensam, é que essas mesmas pessoas começam a envenenar a nossa vida. Arranjam sempre maneira de tornar o nosso dia negro. Acabamos por nos importar e deixar que nos magoem. Adorei, mesmo Emm *.*
ResponderEliminar"Sangue vermelho, como o de toda a gente".
ResponderEliminarO desfecho não poderia ser mais do que perfeito.
Em um universo onde se predomina o modismo dos contos fantásticos, eu ainda admiro muito contos fortes, dramáticos e contudo, realistas!
Estás de parabéns Bree, escreves como eu, usando conteúdo de realidade e espero que muito em breve este modismo infantil passe e os autores que falam da vida, da realidade, voltem a ser reconhecidos.