Like The Renegades!

março 05, 2012

Fim da linha.

   

   Apressei-me a entrar em casa fazendo a porta embater furiosamente, produzindo um ruído incomodativo. Peguei novamente na chave que pendia na minha mão esquerda e quase instintivamente, fi-la entrar na fechadura, rodando-a e certificando-me de que ninguém ali entraria. Só então o meu coração estabilizou e a minha respiração normalizou. Aos poucos fui desanuviando a minha mente enquanto encostava lentamente a cabeça e o corpo à porta, procurando descontrair. Não era de todo fácil.
   O meu corpo tornou a estremecer com a força das pancadas de que a porta era alvo. Alguém esmurrava agressiva e deliberadamente a porta na minha retaguarda. As lágrimas irromperam compulsivamente pelos meus olhos, deslizando amarguradamente pelo meu semblante pálido.
    -Sai daqui! Deixa-me em paz! - Gritei, expulsando uma boa parte da minha raiva através do grito produzido. As pancadas cessaram instantaneamente para, logo de seguida, retornarem mais vorazes e violentas.
   Fazia um mês que assim era, dia após dia. E nem mesmo quando me esforçava por estar acompanhada aquele pesadelo cessava. Por vezes eu própria me privava da companhia dos meus amigos, não fossem os meus erros virar problemas e consequências deles. O meu destino estava traçado; o deles não tinha de estar.
    -Abre a porcaria da porta ou juro que a deito abaixo e desta vez não tens escapatória possível! - Ameaçou a sua voz rouca e vingativa. - Sai daí, minha cabra! Sabes que não podes fugir eternamente, não sabes?
   Mais pancadas. Umas seguidas de outras cada vez mais fortes. A minha cabeça latejava pedindo auxilio e os meus joelhos tremiam peremptoriamente. Estava prestes a sucumbir, tinha essa certeza.
   Fazendo um novo esforço, ergui-me do chão frio e, cambaleante, dirigi-me à cozinha. Era a minha vez de ditar as regras daquele jogo macabro e desleal. 
   Era o fim da linha. Mais um dia bastaria para me enlouquecer, para me levar a cometer mais uma loucura. Revirando as gavetas desesperadamente, procurei algum objeto contundente. Uma simples tesoura chegaria, mas eu queria mais. Queria algo que me concedesse outra... segurança.
   Puxando lentamente as mangas da túnica que vestia para trás, enxerguei os meus braços repletos de marcas. Ainda lá residiam, relembrando-me de cada dia daquele pesadelo, como cicatrizes que ficam para a vida. 
   Afastando o meu cabelo negro do rosto, enverguei uma faca exacerbadamente grande. Como um punhal. Perigosa e desmedida, contundente e afiada. Era exatamente o que eu necessitava.
   Lentamente atravessei o corredor até ao hall de entrada. As pancadas prosseguiam, desta vez acompanhadas por impropérios e grunhidos.
    -Sai daqui! Sai daqui enquanto é tempo! - Vociferei, esforçando-me para que a minha voz não tremesse.
    -Isso é uma ameaça, querida?! - Inquiriu, ironicamente.
   Inundada por uma descarga de raiva levei a mão ao puxador e após rodar a chave na fechadura, abri a porta num ápice. Na minha mão direita ostentava a faca e no meu rosto habitava um sorriso enlouquecido e destorcido.
    -Tens mesmo de começar a levar-me a sério! - Afirmei perante a sua expressão horrorizada. O seu olhar vacilou e entreabrindo a boca, recuou um par de passos apressados e inseguros, incertos. 
    -Tu não vais fazer nada de que te possas vir a arrepender, Sarah... És demasiado fraca para isso! - Bingo! Exatamente aquilo de que eu estava à espera. O seu truque mais baixo e sujo em ação. Mesmo depois de tudo ele ainda achava que ao desvalorizar-me eu iria sucumbir às suas vontades. Já não resultava comigo. Não naquele momento.
   Avancei num passo incerto, aproximando-me dele.
   -Vá lá, querida, ambos sabemos que não és sequer capaz de me ferir! - Riu secamente, produzindo um esgar  presunçoso tão seu próprio que se tornara irritante. Tornei a avançar.
   A sua expressão oscilou entre o inseguro e o aterrorizado para, mais tarde, ser substituída por uma expressão que ostentava para além de horror : medo. 
    -És um fraco, John! Sempre foste... Não mudaste nem um bocadinho, nem nunca mudarás! - Afirmei certa das minhas palavras. Prossegui. - Sempre a bateres em mulheres! Em mim! És tão fraco que nem és capaz de enfrentar os teus problemas como um homem... És um traste, John! Não aguentaste, foi?
John não estava capaz sequer de pronunciar qualquer palavra. Seria exigir demais do seu reduzido cérebro que funcionasse. Emudecido, John só era capaz de revezar olhares entre a minha cara e a faca que eu empunhava. 
   -Não aguentaste não ter ninguém em quem descarregar ou a quem controlar depois de eu te deixar, não foi? E toda esta perseguição! Um mês, seu canalha! 
   Atabalhoadamente elevei o meu braço esquerdo até ao seu campo de visão.
    -Olha, vê! Consegues vê-las? As marcas que os teus pontapés e o teu cinto deixaram em mim! Passou um mês, John! Consegues ver? Elas não desaparecem... Ficarei para toda a vida com uma recordação nojenta da tua pessoa. Nunca conseguirei ser feliz novamente. Sinto nojo do meu corpo por ter sido tocada por ti, sabes o que isso é?
    «Um mês de felicidade foi o que me concedeste! E para quê? Para depois me entregares a uma prisão de dois anos de dor, sofrimento e lágrimas... Um mês de perseguição! Espero que o Inferno te consuma. - Proferi com escárnio.
   O pânico pintava o seu rosto salpicado pela barba mal cortada.
   Num ato rápido demais, como se o instinto se apoderasse de mim, desferi um golpe fatal no tórax de John. A faca penetrou-lhe na carne e num grito surdo o brilho do seu olhar desapareceu, e o seu corpo tombou lentamente no chão agora manchado de sangue. 
    -Encontramo-nos no Inferno, John. Isto ainda não acabou. - Lancei ao ar as palavras e, pegando firmemente na faca, espetei-a no meu peito. A dor preencheu-me e a minha visão turvou. Escuridão. Imenso. Inferno.

*Esta semana coube-me a mim o one-shot. Espero que gostem :) 
Bree Emma Sommers*

4 comentários:

  1. Texto forte, mas que retrata bem até onde pode chegar uma pessoa continuamente torturada, tanto física quanto psicologicamente.
    Boa semana, Bree e demais "renegadas"

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    1. Infelizmente, mais que forte, é um retrato desta realidade cruel em que vivemos! Por vezes, uma pessoa pode chegar longe demais!
      Muito Obrigada :D

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  2. Estou aturdido Bree! A sério.
    Que texto tenso, fiquei aqui sem piscar e adentrei a trama como se fosse um espectador desta luta de tortura física e, principalmente, psicológica.
    E isto acontece muito, as mulheres ou não reagem e sofrem eternos horrores, ou ao reagir tomam atitudes drásticas diante da violência doméstica.
    Apenas acho que ela não merecia este fim, contudo, seus escritos são tal como os meus, muito realistas e no final, acabamos por perceber que mesmo não sendo o esperado, é isto que nos atraiu em seu desfecho.
    Meus muito parabéns!
    Brilhante! É uma escritora de verdade, nunca tenha dúvidas disto.

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  3. Ainda não tinha tido oportunidade de ler o teu one-shot com olhos de ler e minha querida, está realmente bom!
    O tema é bastante doloroso para nós mulheres, preferia que ela não tivesse o fim que teve mas depois de tanta viol~encia, com uma autoestima destruida, como ela iria sobreviver à sociedade?
    Li sem piscar os olhos, devorei este one-shot! Adorei imenso, Emm ;)
    Parabéns!

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