Like The Renegades!

março 23, 2012

Último dia do pesadelo

   

  A mochila já me pesava nas costas assim como a desilusão me pesava no coração. Aquela rua estendia-se na minha frente, cada vez mais disforme. As pedras da calçada contavam a sua história melhor que ninguém. Desgastadas por mil e uma solas de sapatos, testemunhas de duas mil situações.
   Continuei a avançar pesadamente por entre aquelas casas que se prostravam a cada novo passo. Pelo canto do  olho consegui enxergar os transeuntes que fixavam os seus olhares em mim, à medida que eu avançava pela rua. Poucos sabiam  a minha história. Alguns nem o meu nome recordavam mais. Há muito que era apenas a rapariga lá da rua, aquela que o passado atraiçoara e de quem o melhor futuro escapara. Ninguém se importava de verdade e toda a compaixão era uma máscara reles para a pena recorrente.  Nada que o hábito já não atenuasse.  A cada dia que passava, aquele percurso parecia mais breve, mais curto.
   Consultei o relógio lilás que, no meu pulso, escondia as cicatrizes que não podia exibir. Faltavam uns míseros cinco minutos... Era apenas do que eu dispunha para chegar a casa, abrir a porta e deixar a rotina formar-se. Abrandei o passo. Já não faltava muito até ao meu jardim e qualquer segundo extra que pudesse aproveitar antes de pisar as escadas de casa, seria o melhor do meu dia.
   Dois minutos... Um minuto... Tinha de me apressar. Respirei fundo e arrepiei passo, atravessando aquele jardim decrépito e introduzindo a chave na fechadura. Tentei libertar a tenção dos ombros e abri a porta.
   Os gritos ecoavam, como sempre, pelas paredes sujas, fazendo a minha cabeça latejar. Aquilo, nem o hábito podia curar. Movi-me até à cozinha em passos leves, pousando a mochila pelo caminho.
   A visão já não me surpreendia, mas ainda assim, assustava-me cada vez mais. Aquele verme continuava a gritar com a minha mãe, enquanto esta chorava compulsivamente. Como se já nada mais a prendesse a este mundo e tudo o que a podia salvar, fossem as suas lágrimas.
   -Ah! Já chegaste! - Rosnou, olhando-me pelo canto do olho. Como era rotina, consultou o relógio de pulso rasca, movendo novamente o olhar até mim. - Mesmo a tempo! Andas-te a esticar, miúda! Um segundo mais tarde e dormias na rua!
   -Provavelmente seria melhor que dormir aqui. - Afirmei de dentes cerrados.
   -O que é que disseste, minha vadia? - Inquiriu avançando em passos incertos.
   A adrenalina correu-me as veias e o perigo enfrentou-me. Quantas mais vezes iria eu sucumbir à sua fúria? 
   -Disse que qualquer sitio é melhor que este aqui! - Repeti, aumentando a voz, deliberadamente.
   A sua figura cresceu diante de mim, poderosa, enquanto o rosto da minha mãe se deformava de agonia e medo. Sabia porque ela estava assim... Aliás, eu deveria estar do mesmo modo, no entanto, não estava. Por uma vez, a revolta havia superado o medo.
   -Minha filha da mãe! Deves-me tudo o que tens! De mim dependes e se não queres acabar mal, a mim deves respeito! - Cuspiu.
   -A ti, não te devo nada, seu canalha! - Recuei dois passos, embatendo com as costas na parede. O medo ainda lá estava, por mais que o quisesse reprimir. -Respeito? Nem a tua filha o teve por ti, porque havia eu de to dever?
   A sua mão levantou-se no ar, e num movimento rápido, atingiu a minha face com um estalido bem audível.  Outra chapada... Os meus dedos já não chegavam para contar as vezes em que aquelas mãos sujas me haviam atingido o rosto, deixando a sua marca na minha pele clara. Ainda recordava a dor de cada uma delas, ainda sentia o ardor do murro que levara dias antes. 
   Mas não me podia queixar.. A minha mãe sofria mais que eu, presa com aquele devasso dia após dia, a viver aquele inferno insuportável... Eu ainda ia à escola. Ainda saía de casa, mesmo que à hora certa tivesse de estar em casa. Ainda me podia refugiar na biblioteca e ler, escondida de olhares inquiridores, refugiada de comentários penosos. Porém, sempre que entrava em casa, o ambiente não mudava. Os gritos prosseguiam, os prantos não paravam e a dor podia sentir-se bem longe dali. 
   Todos os dias olhava para o rosto da minha mãe. Outrora fora belo e vivaz... Agora, apenas se assemelhava a uma couve-flor, sulcada de nódoas negras e hematomas. E todos os dias, eu escrevia para o meu pai. Para onde quer que ele estivesse, eu enviava cartas que por certo acabavam no lixo... Quer dizer.. No Céu não há correio , certo?
   Mas agora, tinha o ódio bem à minha frente, personificado na minha vida. Jasper. O demente com quem a minha mãe se casara. Bondoso, no início. Extravagante, com o passar do tempo. Odioso, no final.
   Outra chapada. O ardor já não marcava presença, mas o cheiro a álcool , vindo dele, inebriava-me. Enjoava-me.
   Não ia voltar a repetir o ato. Movi-me rapidamente em direção às escadas, e correndo o mais que me era permitido, fechei-me na casa de banho. Ouvia os seus gritos no andar debaixo, e mais tarde, também os gritos da minha mãe. Era ela que sofria agora. 
   E eu não aguentava mais. Pegando na lâmina da gilete, desferi um golpe no pulso. E a seguir outro. E mais um. O sangue escorria-me pelos braços , e a dor preenchia o vazio que me ocupava. As lágrimas escorriam-me pela face, mas o ritual já era meu conhecido. Desta vez, sabia o que tinha de fazer quando saísse daquele cubículo. 
   E assim, naquele dia, à noite, desci até à cozinha em silêncio. E empunhando uma faca, dirigi-me ao quarto que Jasper partilhava com a minha mãe. Pouco depois, um cadáver apresentava-se à minha frente, coberto de sangue, assim como as minhas mãos e rosto. E a minha mãe gritava. Gritava muito. Mas o pesadelo... esse tinha acabado .


Apesar de não ser dia de One- Shot, apeteceu-me deixar-vos aqui esta mini-história :) Espero que gostem. Peço desculpa pelo tamanho :p
Renegada às quintas,
Bree Emma Sommers#

2 comentários:

  1. Bree Emm what an awesome post! :O Está lindo e estás plenamente desculpada por não ser o dia do one shot ;) Está bem abordado o assunto e gostei do que disseste quando referiste que no início era bondoso e depois odioso! Loved it! ^^ Embora seja um ato cruel dela, acabou com o que a martirizava e às vezes isso vale mais do que propriamente tudo :) Congratulations! :D Beijinho!

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  2. Muito obrigada, Hayley, por cada palavra que aqui deixaste :) Sim, é de facto um ato cruel, no entanto, por vezes, o fim da dor e do pesadelo compensa muita coisa quando as nossas vidas dão uma volta de 360º .
    Muito obrigada ;)

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